quarta-feira, 13 de abril de 2011

CRIANÇA FERIDA


Parece que eu sempre soube que ela estava ali. Escondidinha, encolhida num cantinho escuro. Na verdade, fui eu mesma que a deixei assim. E ela estava ferida, assustada, com medo, com frio... Mas eu não queria vê-la! Achava que morreria, se voltasse para pegá-la no colo. Ela era tão pequena, mas tão pesada para mim...

Há quanto tempo será que ela esta ali? Vinte, trinta anos? E a dor, por que não passava? E por que a ferida não sarava? Por que ela ainda estava do mesmo jeito que eu a havia deixado? Por que, por mais que eu tenha passado a vida fazendo questão de escondê-la, ela estava sempre ali, incomodando, me fazendo sentir aquele peso todo?

E eu tentando viver como se nada tivesse acontecido. Eu ia de um lado para outro, tentava crescer, seguir em frente. Eu queria fazer tantas coisas na minha vida, tinha muitos sonhos tão lindos. E eu sabia que não iria a lugar nenhum sem ela. Mas como é que eu faria para trazê-la para fora? Com o tempo, ela foi criando um tipo de resistência, também. Ela mesma queria ficar lá naquele canto escuro, porque tinha muito medo de se ferir de novo. Ela via tudo cinza, tudo era motivo para se retrair ou para se armar contra o mundo com raiva e ressentimento. É claro que algumas vezes eu tentei trazê-la comigo, para ver como era bom o sol, o calor. Mas ela tinha mais medo do que eu mesma! Ela era tão frágil quanto no dia em que se feriu. E se recusava a sair... e eu, por minha vez, me recusava a pegá-la no colo. Era sofrimento demais, eu não aguentaria. Ela me dizia isso!

E todos esses anos, ela me dizia, também que eu não poderia ir para muito longe. Eu não poderia fazer muitas coisas que outras pessoas faziam e não seria feliz completamente. Eu sentiria a dor dela para o resto da vida. Teria que viver assim, fugindo da dor, mas sem conseguir me desprender totalmente dela. Sentindo aquele aperto no peito...

Mas um dia eu decidi que teria coragem. Abri a porta, olhei para ela! E ela me olhou, com aqueles olhos de quem sentia uma dor imensa... Ela me olhou com medo, com raiva... toda aquela raiva que eu conhecia bem...que fazia parte da nossa vida desde o dia em que ela se feriu e eu decidi trancá-la no escuro! E com raiva ela veio contra mim! Com raiva, ela me mostrou o quanto eu fui negligente por deixá-la ferida por tanto tempo. Eu quase recuei, mas eu percebi que se não a ajudasse agora, isso só aumentaria sua dor... e a minha.

E a raiva se dissipou num instante, quando eu fui até ela e decidi pegá-la em meus braços. Ela não lutou mais... se aninhou ali no meu colo e chorou, soluçou tanto. A ponto de quase perder os sentidos, a ponto de perder-se naquela dor. Ela me contava quanto medo havia sentido e como ficou perdida depois daquele dia, do dia em que foi ferida. Ela me dizia que se sentia ao mesmo tempo protegida da dor, ali sozinha, e frustrada por não ter vivido nada do que queria, por não ter se divertido, por não ter aproveitado tudo o que a vida poderia ser.
Fiquei ali com ela, não sei por quanto tempo. Até que ela se acalmasse... até que a minha dor também abrandasse. Até que minhas lágrimas parassem de rolar tão incessantemente... A criança ferida agora me olhava... e era eu quem lhe contava o quanto eu queria não ter que escondê-la por tanto tempo! Era eu quem contava minhas dores, e ela conhecia todas...eram suas também!

Até que ela reparou no quanto eu havia crescido... nas coisas que eu estava relizando. Ela se sentiu ao mesmo tempo orgulhosa e empolgada para ver mais o mundo lá fora e no que a nossa vida tinha se tornado. Seus olhinhos brilhavam! Nossa confiança uma na outra voltou... peguei sua mão e a levei para passear.

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