sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Licinha


Esse era meu apelido quando criança mas depois que entrei na adolescência, até pouco tempo atrás eu passei a detestá-lo e não admitia que ninguém me chamasse assim...tinha raiva só de ouvir, só de lembrar desse apelido e não tinha explicação para isso. No começo podia até parecer que era por causa da adolescência, por não querer mais ser tratada como criança, mas isso persistiu até o ano passado. Claro que depois de um tempo sendo chamada de Val, eu já nem lembrava mais da Licinha...mas então por um capricho do destino eu tive que dar de cara com ela...aquela criança retraída, que queria ser invisível, que queria crescer logo, que não queria falar com ninguém, que se escondia quando via gente, quando chegava visita em casa...a única criança que não brincava na rua com as outras e que preferia ver a brincadeira dos outros escondidinha através de uma fresta da janela e desejando tanto poder ser igual a eles. Aquela de quem os pais se orgulhavam por ser estudiosa, comportada e compreensiva, mas que por dentro sentia uma raiva maior que ela própria, uma raiva mortal...
A Licinha...ela andou sumida por uns vinte anos e quando a encontrei, depois desse tempo todo percebi que era uma criança triste, que sentia medo e que não sabia gritar para se defender, que não sabia como usar a voz para expressar o que sentia ou o que desejava...E só pode ser triste uma criança que diz que brincar é "chato", mas que no fundo deseja intensamente se soltar do seu medo de ser ridicularizada e rejeitada. Só pode ser triste uma criança que vive uma vidinha EXATAMENTE contrária à que gostaria de viver, que sente que todos, inclusive os da sua família são uns chatos...que não se sente ligada a ninguém, nem à própria mãe!
Mas ela era só uma menininha que queria carinho, que queria que seus desejos fossem pelo menos ouvidos,ou que ao menos tivesse liberdade para desejar... que a levassem a sério, que lhe dessem importância. Era uma menininha que queria tanto o colo da mãe e que por não poder dizer isso à ela, ou por não saber como fazer isso, preferia se afastar, se encolher num canto sozinha e se contentar em apenas ser "compreensiva", a que sabia que os irmãozinhos precisavam mais da mãe, que a mãe precisava trabalhar e que todo mundo precisava de algo que era mais importante, todos tinham prioridades e ela ia ficando cada vez mais no seu canto.
Percebi que a Licinha só queria ser acolhida, só queria os sorrisos e o incentivo descompromissado dos amiguinhos, desse tipo que só crianças brincando na rua sabem fazer para se enturmar...ela só queria ser igual as outras crianças e por mais que desejasse isso, sentia que no fundo, ela era diferente, estranha...era presa, todas as sua expressões eram presas e ela nem sabia o que as prendia. Se tentava falar um "oi", dar um sorriso, um beijo, um abraço...se tentava se aproximar de quem quer que fosse, travava.Tinha tanto medo de fazer papel de idiota que simplesmente não fazia nada. Era como um objeto da casa, algo inanimado, decorativo...e ninguém percebeu isso! Passei a infância inteira sem ser notada, sem que uma única pessoa entendesse o que se passava comigo... até que eu mesma, depois de já ter esquecido de tanta coisa, comecei a notar...na verdade fui forçada a olhar para aquela criança. A MINHA criança! EU! A LICINHA! E quando olhei, ela estava aos prantos e soluçava como que querendo por para fora de uma só vez de toda aquela sua dor... a dor de uma criança ferida!
Entendi que, se ela queria colo, eu era a pessoa mais indicada para lhe dar isso e muito mais...eu era a única pessoa no mundo que poderia entender aquela criança, porque ela era eu! Sua dor era a minha, seu medo, o meu...e hoje, adulta, independente, no processo de auto-conhecimento e integração em que estou, me senti mais do que capacitada para ser continente a ela. Sim, era eu quem deveria colocá-la no colo e dizer que está tudo bem, que ela está protegida agora, que não tem porque se esconder...que ela é uma criança linda e muito importante para mim...que não tem problema correr o risco de ser ridícula ou não saber ser igual a todo mundo porque todos somos iguais.
Foi o que fiz...e a Licinha está no meu colo agora...viva, feliz, eufórica...doida para sair "lá fora" e brincar bastante...eu resgatei minha criança. Resgatei a Licinha!


5 comentários:

  1. Uau...
    foi dificil ler até o fim sem me emocionar. Obrigada por dividir isso! Fico grata e feliz por te ver assim, feliz, eufórica...Inteira!

    Beijo grande
    AMO-TE IRMÃ

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  2. oiiii... me emocionei mtooo!!
    d uma certa maneira tbm fui, sou...uma Licinha:( espero um dia tbm poder me liberta desse medo ii ser completamente feliz!!!
    Bjs!!!
    Amo vc!!!

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  3. é gente...essa menininha de vez em quando reclama...e dói...mas eu a coloco em meu colo de novo e tudo melhora!!!

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  4. Oi Val, lindo seu texto, eu tb era uma Licinha (no meu caso Sulinha, rsrs)mas hoje sou uma Sulamita, completa mãe, esposa, mulher e o que mais eu desejar ser. Beijos e vamos á luta!

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  5. Prima estou adorando ler seus textos..

    este em especial é muito emocionante, pq acho que muitos de nós passamos por "crises" como estas e, não sabemos como expressar!

    PS: Fiquei muito feliz em saber que a "Licinha" ainda existe.

    Bjs!

    Kika

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