quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A MENINA


Essa história é de uma menina que nasceu numa cidade do interior do sertão nordestino. Teve uma infância difícil. Trabalhou na roça desde muito pequena, tinha muitos irmãos, conheceu de perto a miséria, a fome e o trabalho duro. Não foi à escola, não aprendeu a ler e escrever, não recebeu carinho. A única forma de relação humana que conheceu foi baseada em violência doméstica e desrespeito. Quando se casou, aos dezoito anos viu se repetir o quadro familiar de sua vida inteira. Um marido violento, de humor instável, alcoolista, que lhe deu muitas surras. Engravidou quinze vezes e, desses quinze, seis filhos não sobreviveram, alguns nasceram tão debilitados pela subnutrição da mãe que não resistiram, outros morreram ainda no ventre, pelas surras que a mãe levava do marido.

Os que conseguiram crescer estavam sempre doentes e como a mãe, não puderam estudar e tiveram que trabalhar logo cedo na roça. A menina continuou por vários anos, sendo espancada e traída pelo marido, vendo seus filhos serem surrados pelo pai até sangrarem, ou desmaiarem e passando fome. Teve sua última filha já por volta dos quarenta anos e seu último parto, por conta de tanta violência que sofreu, foi traumático, seu aparelho urinário e reprodutor foram expelidos pelo canal vaginal, ficando expostos a todo o tipo de infecção.

Então, a menina decidiu lutar por sua vida. Decidiu que escaparia daquela realidade terrível. Decidiu que cuidaria de seu corpo e de suas emoções. Decidiu que sua vida teria um novo rumo, que ela mesma faria com que isso acontecesse.

Mesmo nas péssimas condições físicas em que estava, viajou durante três dias de ônibus até o Rio de Janeiro, para se tratar. Foi morar com o filho mais velho, que já estava por lá, fugindo de seu pai violento. Teve que deixar as crianças sendo cuidadas pelas filhas mais velhas e teve que se submeter a diversas cirurgias, alguns órgãos não puderam ser salvos, passou por transplantes e um dos órgãos que recebeu nem era humano. Mas a menina tinha uma motivação: ir para o mais longe que pudesse de seu passado, do modo de vida que conhecera e escrever uma história nova para si e sabia que isso exigia que seu corpo estivesse em condições de levá-la onde pretendia ir para conseguir o que queria.

Depois de todas essas cirurgias e de anos longe de seus filhos, sem saber se estavam vivos, se o marido já não os teria espalhado pela casa de parentes, a menina, já recuperada decidiu trabalhar, mudou-se para São Paulo, alugou uma casa e escreveu, chamando os filhos para morarem com ela. Agora tudo começava a mudar. A menina via que sua luta estava dando algum resultado. Aos poucos os filhos todos estavam vindo do Nordeste para morar com ela. Começaram a trabalhar, alguns se casaram e a vida agora estava diferente. Ela já não sofria mais violência. Sorria, cantava, fazia amigos. A menina estava vivendo de verdade, agora. Seu marido tentou se reaproximar. Veio para sua casa e, em poucos dias já tentava repetir o quadro de violência de suas antigas vidas. Mas a menina agora era outra, estava mudada, fortalecida. Chamou a polícia para tirar aquele homem de dentro de sua casa e pôs um fim naquilo tudo. Ele se foi, ela nunca mais o veria.

Alguns anos depois de chegar a São Paulo, a menina soube de uma invasão de lotes num morro e decidiu que era hora de ter sua casa própria. Foi à luta, invadiu um lote, fez uma barraca de lona e dormiu lá por semanas, sozinha. Os filhos cuidavam do terreno durante o dia, pois a menina saía para trabalhar às cinco da manhã. À noite era ela e Deus, naquela escuridão, cercada por desconhecidos. Estava com mais de cinqüenta anos, já tinha netos. Mas ela era valente, lutadora. Conseguiu. Construiu sua casa, ajudou a família, trabalhou até os sessenta e cinco anos e se aposentou.

Alguns de seus filhos, a exemplo do pai se tornaram violentos, alcoolistas ou criminosos, foram presos, passaram anos na prisão. Ela os visitou por todos esses anos, aos domingos e, quando saíram, a menina os acolheu em sua casa. Apesar de tudo o que sofrera na vida, essa menina soube redescobrir seu sorriso, soube conservar em seu coração um lugar para amor e acolhimento.

Ela soube olhar para frente, para seu alvo. Soube enfrentar tudo o que estava em seu caminho, soube escapar de uma realidade de fome e violência. A menina que nasceu tão longe, que teve uma trajetória de luta e sofrimento, hoje está com oitenta e três anos. Ainda é uma menina. Ainda sorri, inocente como uma criança. Ela não precisou brigar, se lamentar ou maldizer sua sorte. Ela não espera mais nada, hoje, a não ser que seus filhos, netos e bisnetos conheçam a alegria verdadeira, o amor e a coragem. Que sejam nobres, pelo menos alguns. Que sejam corajosos, que sejam esperançosos e que tenham um ideal de vida, que corram para seu alvo sem temer a nada.

Essa menina não se deu por vencida, não se escondeu de seus desafios. Se defendeu com bravura e coragem. Ela tomou sua vida nas mãos e fez dela o melhor que podia. Me orgulho muito de saber que seu sangue corre em minhas veias. Que herdei dela essa coragem e fé na vida. Quando estive, por minha vez, diante de um grande desafio, tive a sorte de tê-la ao meu lado. Não precisou falar nada. Só de olhar para ela, sabendo de toda sua história eu tive a mesma coragem, senti o mesmo amor pela minha vida, a mesma vontade de tomar nas mãos o meu destino e fazer da minha vida o melhor que pudesse. Posso imaginar o que ela sentiu...aquele fogo queimando nas veias, o coração batendo forte e lhe dizendo: “Coragem, vá em frente! Não se dê por vencida. Seja você mesma, viva sua vida. Seja mãe, seja mulher. Seja feliz!”

Obrigada, minha menina, por me ensinar a ser mulher...


(Dedicado à minha avó, Maria do Carmo, a quem quero ter a sorte de ainda poder abraçar nessa vida!)

5 comentários:

  1. ALGUNS FATOS E DATAS PODEM ESTAR DIFERENTES DO ORIGINAL, MAS ESCREVI BASEADA NO QUE VI E OUVI DURANTE MINHA INFÂNCIA...ESPERO NÃO ESTAR MUITO LONGE DA HISTÓRIA DELA... QUE MERECE SER RESGATADA E LOUVADA! GUERREIRA MARIA!

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  2. q linddoooo.... como sempre me emociono mtoooo!!!!!
    a vó merece tdo o nosso carinho... aprendi a ama-la, tenho respeito e admiração por ela...
    bjs!!!!

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  3. ADORO O SEU BLOG!!!! Está muito bom o post! Muito carinhoso o blog! Tou te seguindo!

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  4. Impossível conter as lágrimas diante de uma verdade, de uma mulher que não se conformou com o que a vida lhe apresentou e correu atrás da sua felicidade.
    Essa menina é exemplo.
    Não ficou sentando lamentando as dores e se levantou e se pôs a caminho. A Vida dela merecia um filme, um livro...que todos soubessem que é possível mudar de vida sim.
    Belo texto.Parabéns.

    Beijo grande

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  5. olá seguindo seu blog, der uma passadinha no meu e siga se poder tá

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